Leitores escolhidos a dedo: Miguel Bentes

O que esperamos ouvir de um bibliotecário? Louvores aos livros e aplausos à leitura. Mas o nosso convidado sabe que os leitores têm dias, que os livros têm horas, que tudo tem o seu tempo. Chama-se Nuno Miguel Bentes e trabalha na Biblioteca Municipal de Serpa.

“Os livros não substituem tudo, nem um sorriso, nem um raio de sol, nem o voar de uma mosca e tanto nos podem entusiasmar como cansar. Quando os livros me cansam, nem sequer os bons livros escapam. É esta a verdade. Nessas alturas gosto de virar costas aos livros. Entro em dieta e fico atento à fonte que está por detrás de qualquer livro, observo as coisas a viver.
Na biblioteca também me canso, não tanto dos livros, mas da forma como os olho: uma tarefa para cumprir. Porque há sempre livros para tratar, livros para recusar, livros para agradecer, livros para selecionar, livros para eliminar, livros para propor, livros para convidar.” 

Depois deste aperitivo, chegamos finalmente às histórias: “Histórias bonitas tenho-as. As mais marcantes principalmente com crianças. A melhor parte de ser bibliotecário é sentir que estás ali para as pessoas. Não sou um “contador” de histórias, mas um “abridor” de livros, ou seja, alguém que fica com a melhor parte: a partilha com os leitores”.
Os miúdos fazem-no rir muitas vezes: “Um dia escapei-me da biblioteca para beber um café e cruzei-me na rua com um grupo de meninos do pré-escolar. No meio daquele turbilhão, vejo um pequeno braço esticar-se e oiço “olha o contentor de histórias!”. Noutra ocasião, estava num supermercado, digamos, à paisana (barba grande, barriguinha de fora, chinelinho de praia), e, de repente, sinto alguém pequenino abraçado às minhas pernas, uma menina que reconheço logo das sessões de “Contarelos” na biblioteca. Ao fundo do corredor, vejo a mãe, em pânico, sem compreender porque é que que a filhava abraçava um sem-abrigo desconhecido: Ó filha, deixa já esse senhor!”

Atrás do chapéu, está o Miguel!

É impossível não contar que o Miguel vive em Serpa, com a Sílvia e com os filhos. Não são dois ou três. São seis. Quisemos saber se em casa de ferrador, espeto de pau, serão os filhos de um bibliotecário grandes leitores?: “Acho que nem um! Eu sei lá fazer leitores. Alguém saberá? Quando eram mais novos julgava deitar sementes à terra (deitaria mesmo?), depois armei ratoeiras pela casa (com livros). Esperei e nada. Penso: talvez um dia mais tarde, ou não. Lido bem e lido mal com isto, tem dias. Sei que eles não se esquecem das histórias que lhes contava antes de adormecerem. Enfim, vão lendo aqui e ali, uns mais, outros menos, outros nada.”

Se forem a Serpa, passem pela biblioteca (que é linda). Talvez encontrem o Miguel no jardim. Se ele não estiver, é capaz de ter ido até ao Moinho da Amendoeira, onde corre o Guadiana. Não é garantido que esteja a ler. Talvez esteja só “a observar as coisas a viver”.