Leitores escolhidos a dedo: Marta Bernardes

Nem sabemos bem como apresentar a Marta. Porque ela não é uma coisa nem é outra, é isto e aquilo e muito mais. Estudou Artes Plásticas e Filosofia. Escreve poesia. Escreve para cinema. Faz programação. É atriz. Fomos vê-la ao Teatro S. Luiz quando apresentou uma leitura encenada do livro “Os figos são para quem passa”.

Gostas de figos? O que fazes enquanto esperas que amadureçam?

Adoro Figos. Adoro mesmo. E gosto da sua árvore, a figueira: é linda. Tenho uma mesmo em frente à minha janela, que fica toda despida no inverno, todinha. Ficam só os braços fininhos, mas fortes que parecem arames escuros. Depois, aí a partir de fevereiro, as folhas muito verdes e grossas começas a nascer e fica toda coberta. Lá para maio, com os dias quentes começa aquele cheiro doce… e parece que em vez de ser uma árvore é uma fábrica secreta de doces. E na verdade até é uma fábrica de doces, bem vistas as coisas. A coisa mais bonita que descobri sobre os figos, e ainda me deixou a achá-los mais maravilhosos, é que na verdade eles são flores. Sim, flores, flores viradas para dentro. Não é lindo? É quase um poema: “Os figos são flores viradas para dentro.” Enquanto espero que os figos fiquem maduros, assim lá para o meio do verão, vou-me entretendo a pensar nestas coisas e a saber mais: sobre os figos, sobre as pessoas, sobre as ideias, sobre os poemas, sobre tudo o que depois me permite andar no mundo mais espantada.

Quando o teu braço se estica na direção de uma prateleira de livros, o que procura?

Respostas. Mas não se importa nada de não as encontrar.

Que poesia comes ao pequeno-almoço?

A do Manoel de Barros. Conheces?

Nesta leitura encenada, vimos-te dançar, cantar, usar o corpo de maneiras muito diferentes. De que maneira é que o teu corpo também lê?

Eu acho que, na verdade, só sei ler com o corpo. Deixa ver se me explico: os meus olhos são corpo, as minhas ideias são corpo, o meu cérebro é corpo e é tão importante como o coração, como o fígado, o estômago ou os rins.
Essa coisa de que as palavras que se leem são coisa da cabeça só é estranha em muitos sentidos: a cabeça também é parte do corpo não é? Quem é que teve esta ideia de a separar do resto? E mesmo que estivesse separada, nela estão muitas coisas diferentes que fazem o “ler”: as orelhas, que mesmo quando lemos calados, ouvem por dentro o som mesmo carnudo e redondo da palavra bochecha, por exemplo; a boca, que mesmo fechada, às vezes mexe porque a palavra periquito é mesmo, mesmo um passarinho a piar a piar e a língua não consegue ficar quieta; o nariz, que não consegue evitar não ficar torcido com a palavra chulé, ou enviar mensagens urgentes de fome quando lê a palavra gelado. Achas que me expliquei?

Neste tempo de pandemia, o que fazes para evitar o pandemónio?

Desenho, pinto, trabalho o que posso e consigo, tento rir-me o mais que posso, arrumo o que precisa de ser arrumado e desarrumo aquilo que não tinha sentido estar arrumado daquela maneira. Tento dar carinho a quem está perto de mim e preocupado. E sobretudo aprender com os bichos e as plantas que só vivem um dia de cada vez.

Créditos das imagens: © Estelle Valente/Teatro São Luiz