6 perguntas a Clara Rowland

A Clara Rowland é a autora mais recente a entrar no nosso catálogo. É professora de Literatura Brasileira e de Literatura Comparada na Universidade Nova de Lisboa e foi coordenadora do projeto Falso Movimento — estudos sobre escrita e cinema e do projeto GHOST — Espectralidade na Literatura e nas Artes. Tem publicado livros na área dos Estudos Brasileiros sobre Guimarães Rosa, Clarice Lispector, Manuel Bandeira e Carlos Drummond de Andrade, entre outros. 

A propósito do lançamento de Fantasmas, fizemos-lhe algumas perguntas sobre este universo de aparições, ecos, estranhezas e fantasmagorias.


1. Os fantasmas deste livro são mesmo fantasmas a sério?

Quando comecei a pensar no livro, lembro-me de andar à volta de duas expressões: “coisas fantasma” e “coisas que são fantasma”. Nenhuma delas ia dar um bom título, mas foi delas que nasceu a primeira lista que vos mandei e acho que ainda tenho aqui no computador, deixa ver. Sim, era esta: 

Dez coisas-fantasma

  1. som
  2. carta
  3. fotografia
  4. filme
  5. quadro
  6. bicho
  7. nome
  8. casa
  9. espelho
  10. vento

Foi engraçado reencontrar esta anotação há pouco tempo, porque percebi que as palavras da lista acabaram por entrar todas. Só as roupas é que apareceram depois. Mas na ideia das coisas-fantasma, ou das coisas-que-são-fantasma, estava já contido o jogo entre aquilo a que chamas os fantasmas “a sério” (espera: fantasmas a sério?) e os fantasmas que queria convidar para o livro, ligados às coisas de todos os dias. Foi daí que nasceu a ideia das histórias de fantasmas sem fantasmas, explorando o jogo entre presença e ausência, entre visível e invisível, que faz parte da ideia de fantasma, e que a Madalena apanhou tão bem nos desenhos, mas aplicando-a ao próprio fantasma: como se os fantasmas deste livro fossem também “fantasmas fantasma” (como quando dizemos “comboio fantasma”, ou “navio fantasma”), escondidos nas coisas de todos os dias – ou como se o livro pegasse nas suas nove “coisas” e as revirasse na palma da mão para lhes conseguir ver mais lados, invisíveis. Por isso diria que sim, que neste sentido estes são fantasmas a sério! 



Por outro lado, se pensares nas histórias com fantasmas (mesmo!), vais ver que também elas são histórias de coisas, provavelmente as melhores histórias à volta de objectos: casas assombradas, pegadas misteriosas, barulhos inexplicáveis, roupas ou sombras sem corpo, cortinados agitados pelo vento… Pensando agora a partir do fim do nosso caminho, talvez o que o livro tenta fazer é percorrer pelo avesso o caminho da imaginação fantasmagórica, partindo não do fantasma que faz bater uma porta com estrondo, mas da estranheza que sentimos ao ouvir o estrondo da porta que não vimos ninguém fechar; não do fantasma que veste um lençol, mas da roupa de alguém sem ninguém lá dentro. Os fantasmas são formas estranhas ou dão forma ao que sentimos como estranho? Acho que foi essa fricção que tentámos explorar.


2. Quando é que começaste a interessar-te por sombras, rastos, ecos, e outras coisas assim?

Ui, é difícil responder a isso. Foi por aí que começámos todos, não foi?… São “coisas assim” — reflexos, sombras, ecos, pegadas — que chamam a atenção das crianças quando começam a construir uma noção de si e do mundo e são tão fundamentais para as nossas primeiras descobertas. E são também “coisas assim” as que aparecem insistentemente na literatura e nas histórias que contamos — além de estarem na base do funcionamento e da percepção dos dispositivos do cinema ou da fotografia, por exemplo, como podemos ver nas primeiras reacções ao cinema ou às tecnologias da transmissão e gravação do som. Sempre me interessou esse ponto de encontro entre a imaginação infantil, a imaginação literária e as diferentes formas de dar forma nas artes e acho que ando aqui um bocadinho à volta disso, com a liberdade que um livro assim pode dar (ou que vocês me deram!): desse nó em que uma perplexidade infantil, uma história e uma pergunta podem coincidir, sem ser preciso depois desdobrá-las. Provavelmente por isso tentei juntar aqui coisas que me assombravam desde que em miúda comecei a mergulhar em livros e filmes, coisas que aprendi a trabalhar nas aulas sobre muitos destes textos com alunos que têm 18 ou 19 anos quando chegam à Faculdade, coisas em que só reparei ao ler certos livros com as minhas filhas e histórias que estas histórias me ensinaram – uma espécie de colecção de obsessões que fui encontrando ao longo dos anos a partir deste nó. 

Pensando melhor, a tua pergunta podia até ser uma pergunta sobre o momento em que comecei a interessar-me (a sério) por livros e filmes. Suspeito que gostar muito de literatura é sempre um bocadinho gostar muito de fantasmas, porque é de sombras, rastos e ecos que se faz a relação tão fugidia (sempre a jogar à apanhada e às escondidas, nos termos do livro) das palavras com as coisas – e acho sempre maravilhoso quando uma boa história faz uma boa pergunta sobre o que a própria história nos está a fazer. 

Em termos práticos, por fim, há uma resposta mais simples: sempre me interessei, na minha investigação (acho que um dos primeiros artigos que publiquei era sobre a carta fantasma de Teresa no Amor de Perdição…), por todas estas dimensões. Mas nos últimos anos tive a sorte enorme de coordenar, com o José Bértolo, um projecto sobre Espectralidade, intitulado GHOST, em que fizemos coisas incríveis com pessoas incríveis, e de partilhar com o Abel Barros Baptista um conjunto de seminários sobre fantasmas na literatura portuguesa e brasileira… 



3. Neste livro escreves sobre filmes, nomes, casas, sons ou até roupas que nos podem assombrar. O que é que todo este mundo das fantasmagorias pode trazer à vida de todos os dias (aquela que nos faz ter os pés assentes na terra)?

Pode, por exemplo, ajudar a lembrar que ter os pés assentes na terra é tão periclitante como ter a cabeça nas nuvens… Também o chão — ou a vida de todos os dias — é feito de muito mais vidas e camadas do que aquelas em que pensamos quando usamos expressões como essa, e é sempre mais instável do que julgamos saber. O que tentei perseguir foi talvez a tensão entre a aparente solidez de certas coisas da vida de todos os dias e a complexidade da nossa experiência, as várias vidas que vivemos em cada momento, no nosso corpo — incluindo também nessa tensão o modo como acolhemos e integramos tudo aquilo que vamos vivendo fora de nós, nos livros ou nos filmes, e que passa a viver, com toda a força, na nossa imaginação do mundo. Talvez por isso a matriz da literatura fantástica esteja aqui tão presente: basta pensar como o interesse tão forte de histórias de duplos e casas assombradas para leitores jovens (independentemente da idade que tiverem, claro) se relaciona com o tempo da descoberta de uma vida interior, fugidia e invisível mas sedenta de figuras que nos ajudem a ler melhor aquilo que estamos a começar a ser (e que é sempre mais do que o que se deixa ver).


4. O que pode ser mais assustador: uma vida sem sombra de dúvida ou viver na companhia das sombras e dos mistérios?

Ah, mas as sombras, mesmo querendo muito, nunca te largam… Lembro-me de uma personagem do escritor italiano Italo Svevo, Zeno Cosini, a quem um amigo resolve explicar um dia, numa conversa num café, que uma pessoa que anda a pé usa em meio segundo do seu movimento cinquenta e quatro músculos da perna. Fascinado com a clareza da explicação, Zeno tenta identificar os seus cinquenta e quatro músculos, mas encontra apenas uma “complicação enorme” e sai do café a coxear — para sempre. Melhor aprender a viver, como dizes, na companhia dos mistérios ou dos fantasmas, e já agora também na companhia do susto que é bom que eles continuem a provocar. A mim os fantasmas sempre fizeram ou trouxeram boa companhia (como no caso deste livro, que gostei tanto de fazer a quatro mãos) e gosto de pensar que quem ler estes fantasmas pode ficar com vontade de os continuar a procurar (nos livros e filmes de que falamos aqui ou por toda a parte).



5. Este livro também parece ser uma coleção de desencontros: coisas que estavam e já não estão, sons que não pertencem a um lugar, cartas que não encontram o destinatário, pernas que procuram um tronco e uma cabeça. Porque será que estes desencontros nos podem fascinar tanto?

As melhores histórias são histórias de desencontros, não é? E os melhores encontros são os que nascem — contra todas as evidências em contrário — de desencontros. Voltamos à infância: reflexos que são afinal os nossos e não sabíamos, sombras que queremos apanhar e não conseguimos mas que não se desprendem de nós, corpos que desaparecem da nossa vista e voltam depois a aparecer para nos ensinar que sempre estiveram lá, mesmo quando pareciam não estar (e também que não estavam quando tínhamos deles certeza)… são os movimentos desencontrados e fundamentais da nossa imaginação e do modo como fazemos sentido das coisas através dela.


6. De entre todas as personagens e histórias que foste encontrando, há alguma que tenha ficado fora deste livro e que agora tenha começado a visitar-te, tipo fantasma?

Ah, são tantas! Ao longo do livro brincava com a Madalena sobre os “fantasmas dos fantasmas” — coisas que chegaram a estar e saíram, coisas que não chegaram a entrar porque só as encontrei depois… Assim de repente lembro-me de duas, em que tenho pensado bastante. Reli no outro dia um dos livros do Winnie the Pooh e fiquei cheia de pena de não ter lá posto aquele episódio em que o Pooh e o Porquito andam às voltas atrás das pegadas que vão deixando, achando que estão a perseguir um grupo cada vez maior (a cada volta que dão, reencontrado as suas pegadas) de animais desconhecidos. E estive a rever um filme do Mankiewicz que chegou a estar no livro mas acabou por sair, The Ghost and Mrs Muir (O Fantasma Apaixonado, na tradução portuguesa), um dos mais maravilhosos filmes de fantasmas da história do cinema. Tem tudo: um fantasma ao mesmo tempo visível e invisível, uma casa assombrada, uma história de amor, um escritor fantasma — e um final maravilhoso, em que a ideia de viver para sempre na companhia dos nossos fantasmas é levada ao extremo…