Making of do livro “O ponto em que estamos”

Isabel Minhós Martins:


Há uns anos comecei a pensar num livro sobre montanhas, telemóveis, embalagens, árvores, plantações e camisolas. Queria fazer algum tipo de comparação entre o tempo da natureza e o tempo das coisas humanas, aquelas que consumimos e se esfumam num instante. Por exemplo, o tempo que uma montanha demora a formar-se e o tempo que dura um telemóvel nas nossas mãos, não esquecendo que para o construir talvez tenha sido preciso perfurar a dita montanha, em busca de um minério qualquer.

Andei ali às voltas, o livro não saiu. 

Acontece muitas vezes.

Este verão, regressei das férias a pensar nos meus textos futuros. Sobre que assuntos precisamos de conversar? Que livros podem ajudar essas conversas? As ondas de calor e os incêndios angustiam-me de tal maneira que os verões se têm tornado um pouco mais difíceis. Por isso, quando regressei das férias só conseguia pensar em alterações climáticas e, apesar de ainda ser verão, pairavam nuvens escuras sobre os meus pensamentos. Senti que de alguma maneira estávamos em guerra e, quando se está em guerra, não é possível fingir que a guerra não existe (ou talvez sim). Decidi que não fazia sentido escrever outros livros que não livros sobre a nossa relação com a natureza e que precisávamos de fazer livros mais assertivos. Gosto de escrever com espaços para um ponto de interrogação aqui e ali e até uso muito a palavra talvez. Mas agora (talvez) fosse necessário um livro mais afirmativo. 

Tínhamos um livro planeado para sair antes do Natal, mas este livro atrasou-se. Precisávamos de um livro novo — o nosso planeamento é flexível e aberto a imprevistos. Um dia, a caminho de casa vi um anúncio de uma conhecida marca de móveis (e outros produtos para os nossos lares 😊). Dizia só assim: “Montanhas de saldos”. O tal livro voltou a despertar dentro de mim. 



Lembrei-me dos anúncios a automóveis que às vezes vejo na televisão, em que carros impecáveis deslizam junto a falésias junto ao mar ou aceleram entre florestas de cortar a respiração. Pensei, isto é incrível, qualquer dia só temos a natureza para continuar a vender coisas — carros, semanas de férias, cadeiras para a varanda. As imagens da natureza intacta fazem-nos falta para a vermos à distância, para os anúncios, para acreditarmos que continua a existir.

O mesmo para as Montanhas de saldos. Precisamos de montanhas porque a ideia de montanha nos faz falta, a sua grandeza, a sua altura (já a montanha em si, não tenho bem a certeza).

Nessa semana comecei a pensar em todas as coisas grandes que existem no mundo natural. Foi uma semana a pensar em grande 😊! À mesa do jantar, pedi ajuda: quais as coisas maiores de que se lembram de existir na natureza? Comecei a fazer uma lista, coisas enormes ou que exprimissem a ideia de grande quantidade: oceanos, desertos, falésias, cascatas, cordilheiras, planícies a perder de vista. E também cardumes, rebanhos, enxames, bandos. Tudo em grande. Depois, foi só fazer combinações com as coisas humanas, o desperdício, a obsolescência programada, o consumo desenfreado, o crescimento infinito, o nosso conforto (nunca negociável), esse tipo de coisas. Somos todos humanos, sabemos bem que coisas são — eu também conduzo um carro, também compro cadeiras para a varanda, também ando de avião.



Quando falei com o Bernardo sobre fazermos este livro, ambos sabíamos que talvez se tornasse um livro desconfortável. Pensámos: será muito radical?  Mas há dias em que estamos tão zangados com isto de se cometerem erros e de não se aprender nada com eles que concluímos que também era importante passar para um livro esse desconforto, essa nossa impaciência para que alguma coisa mude. Por exemplo, aqui onde moramos o erros repetem-se: continua-se a construir desenfreadamente, a ocupar com urbanizações os poucos espaços verdes que restam, a construir em altura junto ao mar, em despedaçar os centros das terras com vias rápidas. São mais do que conhecidas as consequências deste exagero, mas ainda assim há alguma coisa que fala sempre mais alto (o que será?).

Pouco depois de este livro ter sido publicado, houve uma livreira que nos disse ter ficado muito espantada por o termos editado mesmo em cima do Natal. Porque entre muitas pessoas, há ainda esta ideia de que os livros para crianças têm de ser sempre esperançosos e felizes. E este livro talvez tenha uma pincelada um pouco negra. Mas é a nossa pincelada. É humana. E olhar bem para ela é o mínimo que podemos fazer pela nossa esperança.


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Bernardo P. Carvalho:


Eu nem devia falar destas coisas, que fico logo nervoso, porque sou daquelas pessoas que acha que nós, humanos, somos a maior praga deste planeta que, por onde passamos, usamos, extraímos, destruímos, levamos tudo à frente sem qualquer complacência pelos outros seres vivos que já lá estavam, pelos rios que já corriam, pelas florestas que já existiam, tudo em nome do nosso progresso e bem-estar, achamos nós.


Inicialmente, o estilo e abordagem nas ilustrações foi este

Envenenamos o ar para ir mais depressa, alcatroamos o chão para não tropeçar, poluímos o mar porque temos de meter o nosso cocó em algum lado, esburacamos montanhas para tirar e para passar, e matamos e enjaulamos animais para os comer ou porque temos medo deles ou porque comem mais sardinhas que nós e, sem querer também, um rouxinol a mais ou a menos, tanto faz.

Quando era pequenino, ia para a praia ao pé da minha casa e a praia era incrível: ficava cheia de poças e canais na maré vazia, cheia de vida e animais, e quando metia os óculos de mergulho, o mar metia medo. O meu pai fazia lá caça submarina e apanhava polvos e santolas e depois íamos apanhar mexilhões e percebes e as poças estavam cheias de ouriços e camarõezinhos e peixinhos bebés e depois começou a haver cada vez mais pessoas na praia, puseram luzes porque à noite era perigoso, começaram a desinfetar a areia porque estava suja, cimentaram as encostas porque estavam a cair, e agora já quase não há vida nesta praia, porque aqueles bichos não gostam de luzes à noite nem de detergente nas poças, nem de serem espezinhados no verão nem de serem apanhados para serem comidos. E o que aconteceu a esta praia está neste momento a acontecer no oceano inteiro,

E sem querer pôr as culpas em alguém, parece mesmo que a culpa é de um animal muito inteligente que começa por H e acaba em M. 



Estas ilustrações acabaram por não ser utilizadas no livro

Somos espetaculares, um animal muito especial que sabe ler e construir tralha, inventar coisas, resolver problemas, nadar de baixo de água, voar e fazer buracos muito fundos e agora, no ponto em que estamos, vamos ver como nos vamos sair a tentar remediar todas as asneiras que fizemos, a par com as que continuamos a fazer e se passamos a respeitar a natureza, porque sem ela não podemos viver, e porque isto, neste registo e a esta velocidade, vai acabar num instante, ponto.